Escolas do futebol: FC Nordsjaelland e o direito de sonhar de jovens africanos

Depois de um "tour" pela América do Sul, apresentando detalhes das categorias de base de clubes como Racing, da Argentina, Independiente Medellín, da Colômbia, e Independiente Del Valle, do Equador, oGol desembarca na Dinamarca para contar a história de um projeto inovador no mundo do futebol. 

Fundado em 2003, na cidade de Farum, 24 km de distância da capital Copenhague, o FC Nordsjaelland pode ser pouco conhecido pelos brasileiros, até porque a equipe só tem um título nacional, conquistado na temporada 2011/12, e ainda não é uma figura constante em torneios europeus. Mas possui instalações para treinamentos de fazer inveja aos clubes tupiniquins.

A estrutura do time conta com oito campos de futebol, uma academia, um estádio com capacidade para 10.300 torcedores na Dinamarca, e o centro de aprendizagem LEGO Innovation, voltado para que os jovens se expressem, mostrem seus sentimentos, resolvam problemas e vão além dos métodos clássicos, usando mais o cérebro, as mãos e o corpo. O objetivo do programa não é a aplicação direta no campo, mas proporcionar uma melhor comunicação dos atletas o que acaba interferindo diretamente no jogo. E com uma peculiaridade: o projeto tem suas raízes na África.

O início em Gana

Tudo começou em 1999, quando Tom Vernon, um técnico de futebol e olheiro do Manchester United que acreditava no esporte e na educação como ferramenta de transformação social de lugares com extrema pobreza, fundou a Right to Dream em Accra, capital de Gana. 

Ao longo dos anos, o projeto foi ganhando corpo, ficando cada vez mais relevante no cenário africano e também mundial. Fruto disso são os resultados apresentados pela academia: mais de 50 atletas se profissionalizaram, mais de 70 ingressaram em Universidades nos Estados Unidos e é o único local para desenvolvimento do futebol feminino na África, com instalações idênticas para homens e mulheres, e dormitório para 90 atletas em Gana. Tanto o centro de treinamento em Accra, quanto em Farum, possuem o programa LEGO Innovation. 

Em dezembro de 2015, Vernon deu um grande passo rumo à evolução do seu projeto. Com ajuda de investidores, ele comprou o FC Nordsjaelland, clube da cidade de Farum, na Dinamarca, a 24km da capital Copenhague. A aquisição possibilitou que os jovens africanos pudessem fazer um intercâmbio europeu e, os de maior destaque, continuassem a formação na Europa. 

Mas antes de chegar até a ponta final do processo, com atletas africanos atuando no profissional da equipe dinamarquesa, é preciso entender como é feita a captação dos atletas pela Right to Dream. O diretor técnico e treinador da equipe principal do FC Nordsjaelland, Flemming Pedersen, explicou que o trabalho do departamento de scout inclui avaliações técnicas e educacionais. 

''Nosso pessoal busca os jogadores nos campos de várzea, visitando vilas, cidades e sediamos eventos da Right to Dream, como festivais e campeonatos de futebol. Durante um ano, fazemos isso com cerca de 25 mil crianças, de dez e 11 anos, inclusive com testes cognitivos. Primeiro, olhamos as habilidades físicas e técnicas. Eles são avaliados com testes educacionais, pois queremos elevar o nível educacional de todos. Tentamos analisar o indivíduo, métricas para ver se são extrovertidos, introvertidos, características extra-campo, que nós coletamos para tomarmos decisões sobre as bolsas de estudos'', explicou o treinador. 

Gareth Henderby, Diretor da Academia Right to Dream, complementou dizendo que o local não é restrito apenas aos jovens nascidos de Gana e destacou o difícil trabalho de seleção realizado pelo departamento de scout. 

''Obviamente, a maioria dos atletas são de Gana, mas o segundo país mais representado é a Costa do Marfim, com cerca de 30, 35% dos atletas. No passado, tivemos jogadores de países vizinhos como Burkina Faso, Benin, Nigéria, Camarões e até da África do Sul. Pode ser um processo frustrante porque alguns não possuem a qualidade no futebol, ou têm algumas dificuldades e isso nos dá um grande desafio. Aí, fazemos uma avaliação final com 80, 90 jogadores, por cerca de duas semanas, para finalmente formarmos um grupo de 16, 18 por ano, o que exige um trabalho duro do nosso departamento de scout'', contou Henderby. 

Embora a Right to Dream abra as portas para um novo mundo, com oportunidades no esporte e na educação, ela, assim como toda categoria de base, exige certos sacrifícios dos jovens, como o comprometimento ao processo e, principalmente, a distância dos familiares. 

''Olhamos principalmente para a personalidade do atleta. Quando eles vêm para o Right to Dream, deixam suas famílias, ingressam em um sistema educacional, vão estar em um projeto de desenvolvimento do futebol. A mentalidade do jogador deve estar de acordo com esses desafios logo em uma idade tão jovem. As crianças precisam aprender a assumir responsabilidades, porque vamos prepará-las para o mundo e elas precisarão tomar decisões por si'', disse Henderby.   

Diferenças entre africanos e europeus

O Diretor da Academia ainda revelou que na África, os europeus se deparam com uma realidade muito distante de seus países natais e além do treinamento e todo o acompanhamento para desenvolvimento do atleta, precisam assumir outra função no relacionamento com os jovens.

©Divulgação/FC Nordsjaelland

As diferenças entre ganeses e dinamarqueses são percebidas claramente por Flemming Pedersen e seu staff. O técnico da equipe principal ressaltou pontos da cultura africana que contribuem para a formação de um plantel e destacou os desafios enfrentados pelos atletas que mudam de continente tão jovens, uma vez que o FC Nordsjaelland possui equipes internacionais, que viajam o mundo disputando torneios, a partir do sub-15. 

''Os africanos usam mais a linguagem corporal, dançam e cantam. Eles possuem habilidades físicas e atléticas em alto nível. Quando você traz isso para o grupo, eles aprendem rápido entre eles. Um grupo misto é fantástico, porque todos aprendem juntos e conseguimos extrair o melhor de cada um. Em Gana, é difícil encontrarmos um entendimento do jogo nos atletas nessa idade, mais jovens. O jogo é muito 'caótico'. O estilo do europeu é mais coletivo. As maiores dificuldades dos africanos são a comida e o clima. Quando eles chegam aqui, ficam os primeiros dias em nosso hotel no estádio e cuidamos deles até se mudarem para as suas casas próprias. Depois de um ano, eles já estão adaptados'', detalhou Pedersen. 

Gareth Henderby comentou a forma como os jovens de Gana e países vizinhos encaram o desafio de se tornarem um atleta profissional. Para o funcionário do FC Nordsjaelland, a mentalidade dos africanos influencia diretamente no comportamento dentro e fora de campo e é positiva para a análise do departamento de futebol. 

''A cultura africana é diferente da europeia de várias formas (risos). Em nosso programa de desenvolvimento, temos o currículo das características dos atletas e pontos como a vontade de ganhar, iniciativa, gratidão e inteligência social. Muitos africanos vêem o futebol como um sonho, o meio para ajudar a família, por isso são bastante determinados e disciplinados. Eles se inspiram em nomes como Michael Essien, Samuel Eto'o e Didier Drogba. Em particular, em Gana, a cultura é muito alegre, com muita influência das músicas e dos artistas e os jogadores encontram a felicidade e desfrutam também fora de campo'', disse o Diretor da Academia. 

Antes apenas inspiração, Michael Essien agora é um contato muito próximo dos jovens ganeses. Isso porque, em setembro do ano passado, o ex-jogador de Chelsea e Real Madrid foi anunciado como membro da comissão técnica do profissional do FC Nordsjaelland. O ídolo do país assumiu a função de Treinador de Jogadores. Durante as atividades, atuará como jogador, auxiliando os companheiros, ao mesmo tempo que será assistente de Flemming Pedersen. 

Estilo de jogo e filosofia

Assim como muitos clubes do Brasil, o FC Nordsjaelland depende da venda de jogadores para continuar alimentando o processo. Em 31 de julho do ano passado, a equipe sacramentou a segunda maior transferência de sua história: Mohammed Kudus, por nove milhões de euros, ao Ajax, atrás apenas do turco Emre Mor, negociado com o Borussia Dortmund, por quase dez milhões.

O ganês de 20 anos é, até o momento, o jogador formado na Right to Dream de maior projeção para o futuro. Outro nome a ser mencionado é o de Abdul Majeed Waris, atualmente no Strasbourg, da França, que integrou o elenco de Gana, na Copa do Mundo do Brasil, em 2014. No Campeonato Dinamarquês, os clubes podem iniciar a partida até mesmo com 11 estrangeiros, mas desde que todos tenham mais de 18 anos. Flemming Pedersen reconheceu a necessidade de ''fazer caixa'' com os jovens mais talentosos e de ser preciso nas contratações. 

''Cada ano, vendemos os três ou quatro melhores jogadores para as melhores ligas europeias. Esse é o melhor jeito deles se desenvolverem. Nós temos jogadores mais velhos, mas nessa temporada, estamos com 14 novos jogadores no profissional, o que dá 50% do elenco. Isso não é normal. Geralmente são oito ou nove. Não somos compradores, mas se precisamos de um bom jogador, em uma certa posição, fazemos'', disse o técnico do time profissional. 

©AFC Ajax

"Desde o sub-10 até o time profissional, é o mesmo estilo de jogo, com os mesmos princípios, na Right to Dream e no FC Nordsjaelland. Nós temos uma linha metodológica de treinamentos e jogamos no 4-3-3, mas isso não é o mais importante. Quando eles terminarem o processo na academia, eles terão conhecimento de todas formações e posições no campo. Isso é parte do nosso currículo. Quando eles chegam na equipe profissional, estão prontos para jogarem em diferentes posições, fazerem mudanças nos jogos. A Liga Dinamarquesa é muito competitiva, com alto nível tático. Você precisa ser fisicamente forte. Mas nós somos diferentes dos outros times, porque buscamos jogar um futebol rápido", analisou o diretor técnico. 

Projeto esportivo e social

Outro ponto que chama atenção na Right to Dream é a preocupação em transmitir valores aos jovens. O FC Nordsjaelland está inserido no Common Goal, um movimento global, coordenado pelo espanhol Juan Mata, do Manchester United, que tem o objetivo de incentivar a prática esportiva pelo mundo.

Primeiro clube no mundo a se juntar ao Common Goal, em 2018, o FC Nordsjaelland repassa 1% de todo o seu faturamento para impulsionar o futebol. Além dos dinamarqueses, somente o norte-americano Oakland Roots e o espanhol Unionistas de Salamanca são membros do grupo. 

"Nós gostaríamos que outros clubes juntassem-se a nós no Common Goal. Vamos ver no futuro. Isso seria fantástico. Nós podemos usar o futebol para transformar o mundo em um lugar melhor. Nós estamos tentando ter mais patrocinadores, mas todos com os mesmos valores, aqueles que possam construir um mundo melhor", disse Flemming Pedersen. 

Mas as iniciativas para melhorar a comunidade do futebol e mundial não param por aí. Segundo o gerente de futebol, o FC Nordsjaelland promove outras ações com o intuito de conscientizar os jogadores. Pedersen lembrou que, apesar do clube igualar as condições de treinamento de meninos e meninas, a realidade, até mesmo na Dinamarca, ainda é diferente. O técnico ainda acrescentou que o staff busca debater internamente questões ligadas ao preconceito. 

"Os homens ainda recebem os maiores salários na Dinamarca. Nós devemos evoluir nisso, continuar lutando por essas igualdades, para que não haja diferenças entre homem e mulher e assim, termos um mundo melhor. Nós convidamos um clube amador de jogadores gays e eles no contaram suas histórias e desafios. Nós colocamos esse tópicos para os nossos atletas, para que assim, possam trabalhar por um mundo melhor e um melhor entendimento dos seres humanos", revelou Pedersen. 

O FC Nordsjaelland já recebeu visitas de clubes da Bundesliga e mantém contatos com integrantes da Premier League, discutindo pontos como sistema de academia, rede de observação e desenvolvimento de atletas. O time dinamarquês não faz mistério quanto a isso e dá boas vindas aos interessados. Por fim, Flemming Pedersen contou que a equipe já recebeu a visita de um clube brasileiro, mas salientou que parcerias ainda não foram feitas. 

"O Palmeiras já esteve aqui. Há pouco mais de um ano, eles vieram ouvir sobre o projeto, o Common Goal e nossa técnica de metodologia. Foram apenas contatos e nós temos muitos pelo mundo, mas não temos nenhuma parceria com outros clubes", encerrou Pedersen.