O Central Córdoba escreveu o capítulo mais emblemático da sua história nesta semana e derrotou o Vélez Sarsfield para conquistar a Copa Argentina. Caçula na elite nacional, os Ferroviários passaram pelo líder da Liga Argentina e consolidaram mais uma noite histórica em copas pelo mundo afora
A conquista, por si só, já bastaria para eternizar o momento, mas ganhou um tempero especial pela participação de Omar De Felippe. O técnico do Central é ex-combatente da sangrenta Guerra das Malvinas e fez questão de relembrar as suas raízes durante a comemoração.
"Nas Malvinas aconteceu conosco o que acontece com qualquer argentino, que levanta às 5h da manhã, toma um ônibus e não tem o suficiente. Lá era assim: você tinha fome, frio, precisava levantar e seguir para buscar comida como pudesse. Era preciso subsistir. Aqui é igual, é necessário se impor em tudo”, disse Omar.
"Estou agradecido aos muitos veteranos que torceram pelo Central Córdoba por mim. Sinto que represento eles de alguma forma. É preciso acreditar no que é feito e a partir disso virão as alegrias, como a de hoje (com o título da Copa Argentina), que não vou me esquecer”, completou.
Das trincheiras ao reservado técnico
Na década de 1980, De Felippe cumpria o serviço militar enquanto treinava nas categorias de base do Huracán. Com 18 anos na época, recebeu a liberação do quartel em 1981 e pôde dedicar-se apenas à carreira no futebol. A saída, no entanto, durou pouco tempo.
Quatro meses depois, o então jovem acompanhou o ditador Leopoldo Galtieri ordenar as tropas argentinas a invadirem as Ilhas Malvinas, iniciando um conflito sangrento, que mudou radicalmente a vida de muitos jovens, entre eles De Felippe.
Um dia após o estopim do confronto armado, no dia do seu aniversário, Omar recebeu a carta de convocação do exército argentino para se apresentar no quartel e ser um dos combatentes nas Malvinas.
"Éramos mais ou menos uns 100 soldados no chão do avião, que era um avião comercial, mas sem assentos. Na viagem de seis horas até Río Gallegos ninguém falou nada. E nem de Río Gallegos até as Malvinas. Foi aí que dissemos: ‘A coisa é séria'", revelou o técnico em entrevista para a revista El Gráfico.
Enquanto batalhava pela sobrevivência, De Felippe ainda regava a esperança de voltar para casa e retomar sua carreira de futebol.
"No início, alguns jovens se feriam de propósito, para voltar para casa. Quando estavam limpando as armas, davam um tiro no próprio pé. Diziam que tinha escapado… E voltavam para a Argentina. Quando muitos começaram a fazer isso, os chefes perceberam e disseram ‘bom, daqui em diante quem estiver ferido vai ficar'”. Eu nunca teria feito isso. Tinha a motivação de jogar no Huracán. Meu medo era perder um membro e não poder continuar jogando", relembrou o ex-soldado.
O conflito perdurou por cerca de um mês e resultou na morte de mais de 600 soldados argentinos. Após a rendição das tropas argentinas, De Felippe conseguiu voltar para casa sem nenhum ferimento no corpo, mas com cicatrizes eternas na vida.
"Quando faltavam dois ou três dias e os combates eram acirrados por toda parte. Eles vieram nos procurar na posição e nos levaram para um armazém onde havia comida... muita comida. E eles nos deixaram comer o que quiséssemos. Percebi que era algo como a última ceia", relembrou.
O recomeço
De volta para casa, Omar usou o futebol para dar a volta por cima. Depois de vencer a batalha pela vida nas trincheiras, o ex-combatente precisou superar os distúrbios pós-traumático, que resultaram em mais de 300 suicídios após o fim do conflito.
Com a bola como principal aliada, De Felippe retomou a sua carreira no Huracán e conseguiu construir uma longa carreira passando por Arsenal de Sarandi, Once Caldas, Villa Mitre e Rosario Puerto Belgrano, até se aposentar pelo Olimpo, aos 32 anos.
Pelo próprio clube de Bahía Blanca, o ex-jogador recebeu a sua primeira oportunidade como treinador uma década depois. A trajetória de Omar De Felippe como técnico contou com passagens por Independiente, Vélez Sarsfield, Quilmes, Newell's Old Boys, Platense e Atlético Tucuman, além de um título equatoriano comandando o Emelec.
"O futebol me deu a oportunidade de ter um objetivo a seguir, de praticar o que eu gostava. Acho que se todos nós que voltamos das Malvinas naquela época tivéssemos tido a oportunidade de fazer algo, sentindo-nos importantes, muitas vidas teriam sido salvas. Naquele momento você não percebe, você vê com o passar dos anos e diz: ‘Nossa: quantos caras poderiam estar conosco hoje", desabafou.
Contratado pelo Central na temporada passada, o treinador tinha como objetivo apenas manter o clube na elite do futebol argentino. Mas foi além. O título da Copa Argentina é a maior conquista dos Ferroviarios e levará o clube da região de Santiago del Estero para a sua primeira disputa continental, estreando na LIbertadores.