Antes de encerrar definitivamente a carreira, Zico foi ao Japão. Já consagrado com a camisa 10 do Flamengo, da seleção brasileira e da Udinese, o craque foi para o Kashima Antlers, equipe de uma cidade pacata, com cerca de 40 mil habitantes, que nunca foi a mesma desde a chegada do Galinho.
Na última parte da entrevista que concedeu para oGol, Zico repassou sua trajetória no futebol japonês. Embora tenha feito muitos gols e encantado a torcida, o craque conta que foi para lá por um projeto muito além das quatro linhas.
"O mais importante foi mostrar para eles que eles tinham que fazer do futebol uma profissão. O futebol profissional exige uma entrega total, diária. Não pode ter um trabalho na empresa e ir treinar. O Japão, naquele momento, não conseguia entender isso. Quando fui para lá, na segunda divisão, o time era praticamente formado por funcionários. Os caras, para jogar, recebiam, digamos, 100 reais. Eles trabalhavam, o treino tinha que ser depois de quatro horas, quando saíam do emprego. E não há possibilidade de ser um profissional dessa forma. Então fui lá para mostrar como ia ser", recorda Zico.
O camisa 10 da Gávea ainda chegou a jogar com atletas amadores. Mas aos poucos, conseguiu mostrar para o Kashima o caminho da profissionalização.
"No primeiro turno, ainda joguei com muitos que não iam seguir. Mas no segundo, comecei a usar jogadores jovens que iam seguir a carreira profissional. Eles foram entendendo. Quando veio a liga, eram só profissionais. Os caras treinavam de manhã, de tarde", lembra.
Zico ainda jogou no início profissional da J-League. O craque ressalta como os clubes se organizaram como empresas e contaram com o apoio de outras escolas de futebol para desenvolver o próprio estilo.
"Os clubes montaram como se fossem empresas, cada um fazendo seu contrato, os caras foram tendo mais tempo para se preparar. Diversas escolas ajudaram: a nossa, brasileira, a argentina, a alemã, inglesa, francesa... Todo mundo deu uma contribuição. Por eu ter sido o primeiro, o destaque maior acabou sendo para o Kashima", garante.
A semente plantada por Zico, que depois de encerrar a carreira ainda seguiu como coordenador do Kashima, colhe frutos até hoje. O clube se tornou referência nacional e continental.
"O clube manteve a filosofia. É o clube com mais títulos (no Japão), em 2018 ganhou a Copa da Ásia. Estou muito feliz, trato ao Kashima como um filho que eu tivesse criado. Eles acreditaram em mim, me deram todas as condições para fazer o trabalho. Os melhores japoneses começaram a ir ao Kashima porque eu estava lá. O Kashima foi o primeiro que começou com trabalho de base. Hoje, tem uma base espetacular, com jogadores formados lá. Foi todo um processo que fui para lá não para ser melhor jogador, mas para ajudar o desenvolvimento do futebol japonês, formar ídolos japoneses", confessa.
Zico ainda foi técnico da seleção japonesa e, inclusive, dirigiu a equipe na Copa do Mundo de 2006. "Desde que se profissionalizou, o Japão nunca mais deixou de ir para uma Copa do Mundo. Hoje, é o número 1 da Ásia", ressalta.
Zico deixou o Japão depois da Copa de 2006. Foi campeão como técnico no Fenerbahçe, rodou a Europa e a Ásia mas, depois de trabalho no futebol indiano, recebeu o convite de voltar para o Kashima.
"Em 2018, no meio do ano, a Sumitomo, que sempre foi o grande patrocinador, foi vendida para uma empresa, a Nippon Steel, que não é muito chegada a futebol. E aí o pessoal ficou com receio que o Kashima não encontrasse patrocinadores e me chamaram para fazer parte desse processo. Fui para lá, está completando 25 anos (do início do projeto) e queriam que eu fizesse parte do projeto para os próximos 25", conta Zico.
O brasileiro, então, não só colheu o que plantou no início da década de 1990, como também iniciou um novo processo para garantir um futuro de títulos para o clube.
O Kashima não estava tão bem quando Zico chegou, ao menos a respeito dos resultados em campo. Zico não demitiu a comissão técnica, pelo contrário: agiu com os jogadores para a equipe recuperar a motivação.
"Quando eu cheguei, o Kashima estava mal. Dei uma paquerada em tudo o que estava acontecendo. O time não era ruim, era bom, mas os jogadores estavam muito acomodados. Queriam mudar a comissão, não deixei. Falei: 'O problema não está aí, está nos jogadores'. Fui firme com eles, falei que não poderiam jogar no Kashima só de passagem. Que estavam desperdiçando uma oportunidade de ouro para conquistas. Dali em diante, o time não perdeu mais no campeonato. Só que estava em uma diferença de quase 20 pontos. Na Copa da Ásia, ganhamos pela primeira vez o título", relata.
Atualmente no Rio esperando pelo controle da pandemia do coronavírus, Zico tem contrato até o fim do ano com o Kashima. Assim que o futebol voltar, Galinho deve voltar para a cidade que ele colocou no mapa do futebol mundial para seguir plantando suas sementes.