O futebol foi uma bolha na Venezuela durante anos. A fome nas ruas e o desespero da população não chegava em campo. Os times seguiam jogando, e os atletas tendo boas condições de vida. "Na Venezuela, quem tem dinheiro, vive tranquilo. Quem não tem, morre de fome". A frase, forte, é de Pablo Moreira, único brasileiro presente no último Campeonato Venezuelano. A bolha, porém, foi estourada, e a Conmebol estuda tirar os jogos internacionais de equipes venezuelanas do país. A bolha estourou, mas o futebol é o menor dos problemas na Venezuela. Pablo tem uma história para contar, embora ela não seja fácil de ouvir.
Após passagem pelo The Strongest, da Bolívia, o brasileiro recebeu o convite para jogar no Mineros, de Puerto Ordaz, no início do ano passado. Em conversa por telefone com a reportagem de oGol, o meia, hoje de volta ao futebol boliviano, no Mariscal de Sucre, confessou que aceitou o desafio com certo receio.
"Para falar a verdade, fiquei meio 'assim'. Estava com medo pela situação do país. Graças a Deus, fui bem recebido na cidade em que morava, o clube me tratou da melhor maneira possível. A situação do povo está bem crítica, mas não influenciou muito no futebol", contou.
Pablo viveu algum tempo na bolha. Tinha as boas condições oferecidas pelo Mineros, mas via, nas ruas, o que o país realmente era. A pobreza que Pablo via na TV era bem pior na realidade. A bolha foi estourando aos poucos...
"Eu via muita coisa na televisão. A pobreza, as pessoas morrendo de fome, pensava nessas coisas. O clube me recebeu, me deu tudo, me colocou para morar em um condomínio tranquilo, tinha carro para me levar para o treino, depois para casa. Não passei dificuldade, mas, ao passar pela rua, a gente notava as pessoas pedindo, às vezes caídas no chão já, morrendo de fome, gritando, pedindo comida. Era uma situação muito triste".
O que falar? Melhor ouvir: "Muitas vezes até no shopping a gente via alguém te pedindo alguma coisa para comer, com a roupa toda rasgada... Uma vez uma criança me falou uma coisa que me deixou marcado. Eu lembro que estava indo no cinema com dois companheiros. A gente parou no Burger King, e veio uma criança com um 'negócio' de pipoca e falou: 'Se eu jogar essa pipoca para cima e parar na boca, você me compra um hambúrguer?' Aí falei assim: 'Mas você não já tem a pipoca para comer?' Aí ela perguntou: 'Sabe onde eu peguei essa pipoca? No lixo'. Levei ela lá, comprei um hambúrguer. A gente não deseja isso para ninguém. A gente fica sem palavras".
Realmente, faltam palavras. Pablo as tentou achar para tentar explicar o que vivia. Tentou. Por mais surreal que possa parecer, tudo foi verdade. O brasileiro viu a miséria e a fome de perto. Tinha dificuldades para dormir já que muita gente tinha dificuldades para comer.
"Eu morava em um edifício lá em cima e via as pessoas passando pela rua dois, três dias sem comer, e às vezes até matavam animal para comer. É muito complicado. Chegava momento que eu deitava e ficava pensando: 'Meu Deus, o que vai ser dessas pessoas?'. Ainda mais agora sem luz, muita gente morrendo em hospital. É uma situação muito triste".
"Se você morar lá, você não pode andar na rua. Mesmo no shopping, não pode andar com o celular na mão. Volta para a casa até sem cueca, porque até a cueca roubam. No hotel não podia deixar carteira, porque os próprios camareiros roubavam. É uma situação...".
O bombardeio de verdades sobre o que poderia ser mentira só reforça que a gota d´água na crise da Venezuela já caiu faz tempo. Mas nada mudou, pelo contrário. Pior que está, na Venezuela fica. Pablo segue, mesmo de Sucre, acompanhando seus antigos companheiros na Venezuela.
"Acompanho, porque a maioria dos meus companheiros continuam lá. Para eles (jogadores), não influencia muito, não. Cada um tem seu apartamento, suas condições para poder viver tranquilo. Na Venezuela, quem tem dinheiro, vive tranquilo. Quem não tem, morre de fome".
No meio disso tudo, o futebol é uma tentativa de manter as aparências. Mas até o futebol já saiu da bolha. Talvez nem o esporte mais popular do mundo se salve, nem ele consiga fazer o povo sorrir.
"Se continuar como está agora, é bem perigoso. Outro dia, no próprio campeonato de lá, dois times se enfrentavam e queriam adiar o jogo, porque não tinha luz nos vestiários, não tinha água, mas a federação obrigou. Então, quando começou o jogo, os jogadores começaram a bater papo e ficaram os 90 minutos sem tocar na bola (o jogo referido aconteceu dia 10 de março, e foi entre Zulia e Caracas)".
Uma coisa é certa: tocar na bola é o menos importante na Venezuela hoje em dia. O futebol ficou conhecido muitas vezes por ajudar a tirar muita gente da miséria, por ser capaz de parar guerras e fazer os mais humildes sorrirem. Mas na Venezuela, o esporte ainda não encontrou formas de voltar a ser um bem social. Enquanto isso...
#10Marzo Los jugadores del @Caracas_FC y @Zulia_FC decidieron quedarse parados luego del pitazo inicial, debido a que no están dadas las condiciones para disputarse el partido. Maracaibo va a cumplir 72 horas sin luz... #TorneoApertura2019 pic.twitter.com/jeJ3Q7pi1W
— Thomas Cárdenas (@Thomascl25) 10 de março de 2019